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A (in)constitucionalidade da tributação de verbas indenizatórias: Implicações para os departamentos jurídico e de recursos humanos
A tributação de verbas indenizatórias no Brasil provoca intensos debates jurídicos. O STF reconhece a natureza salarial do terço constitucional, mas exclui o salário-maternidade da incidência contributiva
No Brasil, a incidência de contribuições sociais sobre parcelas de natureza indenizatória tem sido fonte de intensos debates jurídicos. A questão, além de técnica, possui efeitos diretos e sensíveis para o planejamento trabalhista e tributário das empresas. Neste artigo, analisamos as principais teses jurídicas a favor da constitucionalidade da tributação dessas verbas e os atuais posicionamentos do STF, com foco nos reflexos práticos para o setor jurídico e de RH.
A Constituição Federal, no art. 195, I, alínea "a", prevê a contribuição social do empregador incidente sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, "a qualquer título", ao trabalhador. O termo "a qualquer título" tem sido o principal ponto de apoio da União para sustentar a legitimidade da tributação de verbas indenizatórias, defendendo que, ainda que não constituam salário, tais pagamentos estão ligados à relação de trabalho e, por isso, estariam no campo de incidência das contribuições sociais.
Contudo, diversas rubricas pagas aos empregados têm nítido caráter indenizatório. É o caso do terço constitucional de férias, do adicional de 1/3 constitucional sobre essas férias, das faltas abonadas por atestados médicos, pagas nos primeiros 15 dias, bem como do salário-maternidade. Todas essas parcelas visam compensar o trabalhador por um dano ou situação específica, em decorrência de uma obrigação prevista em lei, e não retribuir diretamente o trabalho prestado.
A discussão se acirrou com a multiplicação de fiscalizações da Receita Federal exigindo o recolhimento das contribuições sobre tais verbas. Muitas empresas se viram obrigadas a recorrer ao Judiciário para afastar essas cobranças, sustentando que a Constituição não permite a tributação de valores que não representam retribuição ao labor, ou seja, que não têm natureza salarial.
I. Terço constitucional sobre férias
Em 2014, o STJ havia decidido que a contribuição previdenciária patronal não incidiria sobre o adicional de férias, ocasião em que fixou a Tese 737:
"No que se refere ao adicional de férias relativo às férias indenizadas, a não incidência de contribuição previdenciária decorre de expressa previsão legal."
A referida tese foi extraída do julgamento de um REsp 1.230.957/RS, que definiu o seguinte entendimento:
"(...) A importância paga a título de terço constitucional de férias possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária (a cargo da empresa). "
O entendimento do STJ já havia se consolidado sobre o tema, nesse mesmo sentido:
AgRg no REsp 1.248.585/MA:
"PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. QUINZE PRIMEIROS DIAS DO AUXÍLIO-DOENÇA E TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS. NÃO INCIDÊNCIA. PRECEDENTES.
2. A Primeira Seção, ao apreciar a petição 7.296/PE (rel. min. Eliana Calmon), acolheu o Incidente de Uniformização de Jurisprudência para afastar a cobrança de Contribuição Previdenciária sobre o terço constitucional de férias.
3. Entendimento que se aplica inclusive aos empregados celetistas contratados por empresas privadas (AgRg no EREsp 957.719/SC, rel. min. César Asfor Rocha, DJ de 16/11/2010).
4. A decisão sobre a não incidência da contribuição previdenciária em comento não viola o princípio da reserva de plenário, haja vista que ela não pressupõe a declaração de inconstitucionalidade da legislação previdenciária suscitada pela agravante (arts. 22 e 28 da lei 8.212/1991 e 60, § 3º, da lei 8.213/1991)."
Por outro lado, em 2020 o STF no julgamento do Tema 985, que reconheceu repercussão geral, divergindo da tese firmada pelo STJ em 2014:
Natureza jurídica do terço constitucional de férias, indenizadas ou gozadas, para fins de incidência da contribuição previdenciária patronal.
"É legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias."
O entendimento do supremo analisou o conceito constitucional determinado no art. 195, I:
"Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;"
O ministro Marco Aurélio, relator do caso, defendeu o caráter salarial dos valores do terço constitucional de férias recebido pelos empregados. Ele argumentou que essa verba é auferida periodicamente e complementa a remuneração dos trabalhadores.
Portanto, à luz de outras decisões do STF, que versavam sobre outros tipos de prestações feitas pelos empregadores, o pagamento de um terço a mais do salário nas férias dos empregados deve ser tributado.
No entanto, o Supremo modulou os efeitos dessa decisão e determinou que a inclusão do terço de férias no cálculo da contribuição previdenciária patronal só vale a partir da publicação da ata do julgamento sobre o tema, e os valores já pagos e não questionados judicialmente até então não serão devolvidos pela União.
Dito isso, em resumo, o STJ fixou entendimento há dez anos pela natureza indenizatória da verba, e por isso afastou a incidência da contribuição social patronal.
Ao analisar o tema, o STF entendeu que a verba, na verdade, possui natureza salarial, já que é auferida periodicamente, e complementa a remuneração do trabalhador. Em sua decisão, o Supremo reconheceu a repercussão geral de seu entendimento.
A aplicação da repercussão geral tem o objetivo de reduzir a demanda de recursos levados ao STF, como forma de uniformizar a interpretação constitucional sem que o Supremo tenha que decidir vários casos semelhantes com a mesma questão constitucional.
Por meio da repercussão geral é possível padronizar os processos no âmbito do STF e dos demais órgãos que compõem o Poder Judiciário.
De maneira geral, a repercussão geral apresenta efeito multiplicador. Isso porque, permite que o STF, por meio da decisão proferida, atinja de uma única vez vários processos análogos.
Assim, a partir do momento que a tese é proferida no recurso, esta passa a ser multiplicada e atribuída a todos os processos semelhantes.
II. Salário maternidade
Por outro lado, a contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade foi considerada inconstitucional pelo STF, em decisão de grande impacto para o sistema tributário trabalhista. O entendimento firmado no julgamento do REsp 576.967/PR, com repercussão geral reconhecida (Tema 72), afastou a incidência da contribuição da empresa sobre valores pagos a título de salário-maternidade, reconhecendo sua natureza de benefício previdenciário, e não de contraprestação ao trabalho.
A lei 8.212/1991 previa expressamente que o salário-maternidade integrava o salário de contribuição, o que legitimava sua inclusão na base de cálculo da contribuição previdenciária devida pelo empregador. No entanto, ao analisar a constitucionalidade da norma, o STF entendeu que a cobrança se afastava dos critérios estabelecidos pelo art. 195, inciso I, alínea "a", da Constituição Federal, segundo o qual a contribuição social patronal deve incidir sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho. Como o salário-maternidade não é fruto da prestação laboral, mas sim um benefício substitutivo da remuneração da empregada afastada por licença maternidade, não haveria base constitucional para sua tributação.
O STF considerou inconstitucional, tanto formal quanto materialmente, a exigência prevista no §2º do art. 28 da lei 8.212/1991 e na parte final da alínea "a" do §9º do mesmo dispositivo. Formalmente, por criar fonte de custeio não prevista na Constituição sem a devida lei complementar. Materialmente, por impor um ônus que recai exclusivamente sobre empresas que contratam mulheres em idade fértil, criando um obstáculo indireto à contratação feminina. Essa discriminação viola os princípios constitucionais da isonomia, da proteção à maternidade e da promoção do trabalho da mulher no mercado.
A decisão do STF não teve modulação de efeitos, o que significa que sua aplicação é retroativa. Dessa forma, empresas que recolheram a contribuição indevidamente podem pleitear a restituição ou compensação dos valores pagos nos últimos cinco anos, conforme os prazos previstos no Código Tributário Nacional.
Em linha com a jurisprudência, a Receita Federal do Brasil se manifestou por meio de soluções de consulta, como a COSIT 361/20 e a 127/21, reconhecendo a não incidência da contribuição patronal sobre o salário-maternidade. Além disso, a Receita admitiu que o entendimento se estende também às contribuições destinadas a terceiros (como Sistema "S", INCRA e salário-educação), desde que estas tenham como base de cálculo a folha de salários.
Importa destacar que a decisão do STF não abrange a contribuição previdenciária devida pela própria empregada, que continua a incidir normalmente sobre o valor do salário-maternidade. Esse ponto foi esclarecido tanto na fundamentação da decisão quanto em pareceres da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que reforçaram a validade dessa exação em razão de seus fundamentos constitucionais e legais distintos.
Com base nesse novo cenário jurídico, empresas devem revisar sua apuração das contribuições previdenciárias, avaliar a viabilidade de recuperação de valores recolhidos indevidamente e, se for o caso, buscar o reconhecimento do direito à restituição ou compensação por via administrativa ou judicial.
III. Faltas abonadas - 15 dias antecedentes ao auxílio doença
A jurisprudência também tem evoluído no sentido de afastar a incidência da contribuição previdenciária sobre valores pagos ao empregado que se ausentar por motivo de doença. Trata-se do caso das faltas abonadas por atestado médico, em que o empregado permanece formalmente vinculado ao contrato de trabalho, mas não presta serviços no período. Nesses casos, é comum que a empresa continue realizando o pagamento normal do salário, o que levanta dúvidas sobre a natureza jurídica dessa verba e sua eventual tributação.
A lei 8.212/1991 estabelece que o salário-de-contribuição corresponde à remuneração paga ao trabalhador como contraprestação pelo trabalho ou pelo tempo à disposição do empregador. Já a lei 8.213/1991, que trata dos benefícios da Previdência Social, determina que nos primeiros quinze dias de afastamento por motivo de doença, a responsabilidade pelo pagamento do salário é da empresa, enquanto o benefício de auxílio-doença só se inicia a partir do décimo sexto dia. Isso significa que os valores pagos nesse período não se confundem com o salário habitual, pois decorrem de uma obrigação legal de caráter assistencial imposta ao empregador, como extensão da cobertura previdenciária.
O entendimento consolidado é de que esses pagamentos não possuem natureza remuneratória, justamente porque não decorrem de trabalho prestado ou de disponibilidade para o serviço, mas de uma interrupção contratual justificada, amparada por norma legal. Essa interpretação tem respaldo no STJ, que já decidiu que não incide contribuição previdenciária sobre os valores pagos ao empregado nos primeiros quinze dias de afastamento por doença, por se tratar de verba que não se enquadra no conceito de remuneração (Tema 738).
A PGFN - Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional também se pronunciou nesse sentido, afirmando expressamente que a contribuição previdenciária não incide sobre tais valores, mesmo quando pagos diretamente pelo empregador. A PGFN reconhece que, embora a verba seja paga pela empresa, ela decorre de uma imposição legal que visa garantir proteção ao trabalhador durante a fase inicial da incapacidade temporária, substituindo a atuação direta da Previdência Social.
Diante desse cenário, aplica-se o mesmo raciocínio às faltas abonadas por atestados médicos, ainda que não ultrapassem o limite de quinze dias. Isso porque a natureza da verba é idêntica: trata-se de um valor pago sem prestação de serviços, motivado por
ausência justificada por doença, o que descaracteriza qualquer natureza salarial. Assim, o valor pago ao empregado nesses casos não configura base de cálculo para a contribuição previdenciária patronal, por ausência de fato gerador tributável.
IV. Conclusão
Para os departamentos jurídicos e de RH, essas decisões representam um importante balizador para revisar rotinas de apuração de encargos e contribuições sociais. É recomendável que, diante das distintas naturezas jurídicas atribuídas às verbas pagas em virtude da relação de trabalho, haja um mapeamento completo das rubricas e uma análise detalhada sobre a natureza de cada uma, à luz da jurisprudência constitucional e infraconstitucional.
O momento atual, em que o STF tem se debruçado de forma mais intensa sobre temas tributários ligados à folha de pagamentos, é decisivo para a consolidação de teses que visam limitar o avanço da carga tributária sobre o setor produtivo. Em termos práticos, decisões que afastam a tributação de verbas indenizatórias reduzem substancialmente os encargos incidentes sobre a rescisão contratual e outros pagamentos acessórios, trazendo impacto direto para o planejamento financeiro das empresas e mais segurança jurídica nas práticas de RH.
Importante destacar que o reconhecimento da inconstitucionalidade da tributação sobre determinadas verbas também abre espaço para ações de repetição de indébito, com possibilidade de recuperação de valores recolhidos indevidamente nos últimos cinco anos. No entanto, cada caso exige análise criteriosa da documentação e dos registros contábeis, a fim de garantir que os valores não tenham sido repassados ao trabalhador, o que impediria a restituição.
Por fim, embora ainda haja pontos pendentes de uniformização, o entendimento que prevalece no Supremo tende a consolidar a tese de que somente verbas com caráter remuneratório devem sofrer incidência de contribuições previdenciárias. Aos gestores de RH e jurídicos, cabe a tarefa de manter-se atualizados com os posicionamentos da Corte e implementar boas práticas que combinem conformidade fiscal com economia legal de encargos.